Roberto Piva no templo budista Zu Lai em 2008.
Foto de Renata D´Elia
Não mais
trarei justificações
aos
olhos do mundo.
Serei
incluído
"pormenor
esboçado”
na
grande bruma.
Não
serei batizado,
Não
serei crismado,
Não
estarei doutorado,
Não
serei domesticado,
pelos
rebanhos da terra.
Morrerei
inocente
sem
nunca ter descoberto
O que há
de bem e mal
de falso
ou certo
no que
vi.
Roberto
Piva
Há exatos três anos, morria em 3 de
julho, o poeta Roberto Piva, aos 72 anos, devido à falência múltipla dos
órgãos, decorrente de uma insuficiência renal, em São Paulo. Diagnosticado com
o Mal de Parkinson, sofrendo por 10 anos, junto com um câncer de próstata durante
a internação. Viveu, modestamente, como professor na rede de ensino público, sendo
evitado por quem o bajulava e pelos círculos literários bem postos do País. Atuou
na área de produção de shows de rock e, juntamente, com o poeta, tradutor e
ensaísta Claudio Willer, foram os poetas brasileiros a serem citados no Dicionário Geral do Surrealismo
publicado na França. Rebelde, por convicção íntima, morreu no momento em que
sua poesia, durante anos trafegando à margem da chamada "crítica
canônica", vinha passando por uma redescoberta.
Gustavo Benini, 34 anos, companheiro
de Piva há mais de dez anos, diz que, mesmo debilitado, Piva estava feliz com o
reconhecimento maior de suas obras. "O Piva sempre foi rodeado de pessoas
mais jovens. Com a internet e com a publicação de suas obras completas, ele
será ainda mais compreendido do que é hoje. Tem até uma comunidade no Orkut em
homenagem a ele", diz Benini. "O Piva como o poeta da rebelião.
Comenta-se muito da mitologia Piva, o anárquico andando pelas ruas paulistanas,
mas não era só isso. Ele trafegou pelo erotismo, pelo místico, ele
transcendia", afirma Renata D'Elia, jornalista e escritora, amiga do
poeta.
Nascido em São Paulo, Roberto Piva foi
um dos mais destacados poetas do Brasil nas últimas décadas. Sua obra-prima, Paranoia, publicada quando tinha 23
anos, em 1963, sob edição de Massao Ohno, o pioneiro editor de poetas
independentes, que faleceu um mês antes do Piva. De sua geração, destacaram-se
também poetas como Hilda Hilst e Claudio Willer. Suas obras foram recentemente
reunidas em três volumes organizados por Alcir Pécora para a editora Globo: Um Estrangeiro na Legião (2005), Mala na Mão & Asas Pretas (2006) e Estranhos Sinais de Saturno (2008).
“E para que ser poeta em tempos de
penúria?”, perguntava Piva num de seus mais recentes poemas. Mais do que seus
contemporâneos, ele sabia o que era viver à margem: de opiniões firmes,
visionário, feroz contra as unanimidades de laboratório, Piva também bradou
orgulhosamente seu homossexualismo por becos e praças de São Paulo. Ele fez
parte de uma geração brilhante, mas, posteriormente marginalizada, com fortes
influências dos poetas beats americanos. Apesar disso, Piva não era facilmente
classificável. Cultivava uma notável independência de escolas, patotas e
panelinhas. Em entrevista publicada em 1983, vociferava contra a cultura
oficial: “A maioria dos que você chama de 'mandarins bem pensantes da cultura'
não passa de um bando de galinhas assustadas. Eles tentam fazer pressão sobre
minhas assumidas irregularidades de comportamento como forma de me enquadrar.
Se eu me enquadrasse, ganharia página inteira na imprensa conformista. Eles
gostariam que me calasse sobre tudo, mas não me calo sobre nada. Para essa
canalha, o meu pecado é ser poeta e intelectual na total insubordinação" –
declarou Piva.
Em 2011, o Instituto Moreira Salles
republicou a estreia de Roberto Piva em livro, o elogiado Paranoia. Um livro fundamental para a poesia moderna brasileira,
quando com apenas 22 anos, lançou seus poemas instantâneos da metrópole cinza,
contraditória e brutal que se formava. A edição revista e atualizada, contém
208 páginas - o IMS chegou a anunciar um lançamento na Casa das Rosas, mas Piva
já estava muito debilitado para participar da noite de autógrafos, o que foi
cancelada.
Paranoia tem um efeito meio alucinógeno, uma
obra que inocula imagens na mente do(a) leitor(a) a todo instante. Todos os
poemas são surpreendentes, como "terraços
ornados com samambaias e suicídios" e "as galerias do meu crânio não odeiam mais a batucada dos
ossos". Um grande livro de poesia sobre uma complexa metrópole, um
retrato de São Paulo como poucos ousaram fazer. Também é, simultaneamente, um
desafio para que se dê à palavra um status de essencialidade e um poder de
contágio. O caos da pauliceia ilhada era sua maior fonte inspiradora. Nota-se em
"Paranoia" que Roberto Piva
mergulhou em "torres chumbo",
na "constelação de cinza" da metrópole e em "almas inoxidáveis flutuando sobre a estação
das angústias suarentas". Também foi uma voz dissonante nos meios
artísticos de São Paulo, numa época em que os escritores ainda se juntavam em
grupos.
Veia Beat
A poesia beatnik original, a
americana, com seu delírio de imagens e paixão e sua ração diária de pó de
estrada, muito retratou a dicotomia da geração encalacrada no "pesadelo de
ar condicionado" de uma América em expansão urbana acelerada, repleta de
alternativas de consumo, mas, com um artificialismo vazio e sufocante que não
parecia oferecer saída a não ser a porta da rua. Os beats pioneiros foram
viajantes, desbravando o interior de um país que para eles parecia pronto a
morrer por imobilismo. Os beats vinham das grandes cidades, mas se punham em
movimento porque parar seria envelhecer.
Quando as sementes beats germinaram no
Brasil, influenciando a geração luminosa da poesia marginal dos anos 60 e 70, a
rebelião ainda era a mesma, mas havia uma pequena diferença na maneira como os
udigrudis nacionais, eles também viajantes a seu modo, proferiam sua
insatisfação por meio de sua obra. Em um Brasil de maravilhas naturais
decantadas em prosa, verso e música, a poesia marginal pareceu eleger a cidade
e seus (des)caminhos como o eixo temático ao qual valia a pena se dedicar, e é
por isso que Chacal, Alice Ruiz, Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de
Haro, Roberto Bicelli, Raul Filker, Décio Bar, Ana Cristina Cesar e Paulo
Leminski, para citar apenas alguns, se sentiam tão em casa ao compor poemas que
situavam o mundo individual na cidade, a tensão e o amálgama entre o
macro-organismo e o olhar individual, uma nova forma de abordar o espelhamento
entre o corpo pessoal e a cidade que já dera a tônica na poesia europeia modernista
do final do século 19 e início do século 20. "Esta cidade me significa", diria Leminski no verso final
de seu poema Curitibas.
Com os créditos devidos à Geração Beat,
mais por sua escolha pessoal de vida rebelde e menos pelos caminhos de sua
poesia. Era apenas um espontâneo, dos que afetam uma inspiração apartada do
esforço. Seus versos sintetizavam, em seu registro, uma busca pela força
concentrada da palavra forte, raivosa, sensual, mística, mas também deixavam
entrever uma sólida erudição sobre a qual o autor assentava seu trabalho. Piva
era um erudito, mas um erudito daquilo que Michel Onfray qualifica como o
"lado B" do pensamento racional empurrado para a sombra pela vitória
dos socráticos nas histórias da filosofia, a "contra tradição" do
pensamento ocidental. Seu trabalho buscava escavar a superfície do inconsciente
por meio de associações de palavras inesperadas, queria emular as intenções dos
pensadores que haviam buscado alternativas ao cartesianismo racional e
procurado a verdade filosófica na expressão estética, nas trevas no terreno
pantanoso abaixo do corroído edifício da razão – e vocês podem ter um gosto
disso no poema que abre este post, Libelo. Acho, e agora entramos no delicado
terreno da opinião pessoal, que no território da metáfora delirante, da
associação desconcertante, Piva só tem rival no Brasil em Murilo Mendes e seu
assumido surrealismo – e não por acaso Murilo seria citado como mestre em Poema
VII dos 20 Poemas com Brócoli,
publicado em 1981:
"mestre Murilo
Mendes tua poesia são
os sapatos de abóboras
que eu calço
nestes dias de
verão."
Não há motivos para
meias palavras: Piva não foi exatamente um poeta inovador. Não há técnicas
novas ou algo nele que já não estivesse na poesia de Murilo Mendes e Jorge de
Lima, se ficarmos apenas entre os brasileiros. Mas isso, afinal, não importa
muito. Pouquíssimos poetas brasileiros, no pós-guerra possuíram imaginação tão
fértil. Roberto Piva foi, além disso tudo, um dos mais dignos representantes do revival neo-romântico
do pós-guerra, o que gerou, nos Estados Unidos por exemplo, toda a melhor
poesia do indispensável movimento Beat (que tampouco fez qualquer coisa que
fosse nova),
assim como dos poetas da chamada Escola de Nova Iorque - neo-romântica é também
a poesia linda de Frank O´Hara, como muitos poemas estimulantes de John
Ashbery, Kenneth Koch e James Schuyler. Na América Latina, talvez possamos
pensar em Arturo Carrera nestes termos. Sinceramente, não me importa muito se o
poeta está "inovando" ou não, quando me vejo diante desta potência
imaginativa:
A Piedade
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido
na extrema paliçada
os
professores falavam da vontade de dominar e da
luta
pela vida as senhoras católicas são piedosas
os
comunistas são piedosos
os
comerciantes são piedosos
só eu
não sou piedoso
se eu
fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos
sábados à noite
eu
seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro
e me fariam perguntas: por que navio
bóia?
por que prego afunda?
eu
deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas
de fortes dentaduras
iria a
bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas
ou barbudos
eu me
universalizaria no senso comum e eles diriam
que
tenho todas as virtudes
eu não
sou piedoso
eu
nunca poderei ser piedoso
meus
olhos retinem e tingem-se de verde
Os
arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os
adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos
de enxofre bombardeiam o horizonte
através
dos meus sonhos.
Piazza I
Uma tarde
............é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
............uma tarde de inverno
...........................sobre um grave pátio
.....onde garòfani .... milk-shake & Claude
....................obcecado com anjos
..........ou vastos motores que giram com
.............................uma graça seráfica
.............tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado ... provado ...sonhado
............& longos viveiros municipais
........sem procurar compreender
..............imaginar
............a medula sem olhos
......ou pássaros virgens
............aconteceu que eu revi
......a simples torre mortal do Sonho
................não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
...Swift Jarry com barulho
.......de sinos nas minhas noites de bárbaro
...os carros de fogo
............os trapézios de mercúrio
...suas mãos escrevendo & pescando
................ninfas escatológicas
pequenos canhões do sangue & os grandes olhos abertos
.........para algum milagre da Sorte
Referências
Bibliográficas:
TREVISAN,
JOÃO SILVÉRIO. A Arte de Transgredir ( Uma Introdução a Roberto Piva ). Artigo
publicado na Revista Agulha, Nº 38, Fortaleza e São Paulo, abril de 2004.
Endereço:
http://www.revista.agulha.nom.br/ag38piva.htm
DOMENECK,
RICARDO. Morre na São Paulo de Pesadelos
o Poeta Roberto Piva (1937 - 2010). Artigo publicado em 3 de julho de 2010, no
blog ricardo-domeneck.blogspot.com.br
PÉCORA,
ALCIR. Coleção Obras Reunidas, Poesia, Organização e Apresentação. Um Estrangeiro
na Legião (1ª edição, 200 páginas, 2005) – Volume 1, Mala na Mão & Asas
Pretas – Volume 2 (1ª edição, 176 páginas, 2006) e Estranhos Sinais de Saturno (1ª
edição, 216 páginas) – Volume 3, Editora Globo, 2009;
WILLER, CLAUDIO. Roberto Piva e a Poesia. Artigo no Blog
Sempre um Papo. Endereço:
http://www.sempreumpapo.com.br/blognews/?p=1631
ótimo! estamos divulgando PIVA no site telescopio.vze.com.desde 1999.
ResponderExcluir